A PRIMEIRA EDUCAÇÃO CRISTÃ

O cristianismo é, antes de tudo, uma religião. Entretanto, dele brotam implicações filosóficas, educacionais e sociais de grande ressonância. Costuma-se mesmo afirmar que ‘com o aparecimento do Cristianismo o rumo da história ocidental muda.’ Rosa Maria da Glória

Na busca dessa relação histórica entre o cristianismo e a educação, esse primeiro capítulo se dedicará a focalizar as implicações educacionais e sociais da religião cristã em seu primeiro momento, ou seja, do seu aparecimento com o nascimento de Jesus Cristo até o período medieval. Dentro deste período histórico, este capítulo abordará temas como o surgimento e a orientação das primeiras escolas e prosseguirá fornecendo um resumo das contribuições pedagógicas dos primeiros educadores cristãos, muitos dos quais conhecidos como os pais da Igreja Cristã.

O surgimento da educação cristã se confunde com o surgimento do cristianismo e com a vida e obra de Cristo na terra, e prossegue com a primeira comunidade dos cristãos, com a obra dos apóstolos. O cristianismo como religião universal tem início com a vinda de Cristo, o Messias Prometido dos judeus. Isso aponta para a unidade e continuidade entre o cristianismo e a religião judaica. Na verdade, para os cristãos, o Antigo e o Novo Testamento da Bíblia são duas dispensações ou fases de uma mesma história da redenção que se centraliza na pessoa de Jesus Cristo, o Messias. Enquanto o povo judeu na antiga dispensação era considerado o povo escolhido de Deus, naquele momento com um caráter nacional enquanto aguardava o Messias, os cristãos são o povo de Deus na nova dispensação, de caráter universal, inaugurada pelo nascimento de Jesus.

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O que é relevante deixar claro, ao se considerar a educação cristã nesse primeiro momento do cristianismo, é que Jesus e seus primeiros seguidores eram judeus, e que neste contexto, muitas das famílias judias enfatizavam a educação e consideravam importante que seus filhos aprendessem um ofício, não só como um meio de subsistência, mas também para que aprendessem a ler e a estudar os escritos bíblicos. Essa prática estendia-se tanto a judeus como aos prosélitos do judaísmo e incluía tanto meninos como meninas.

Ao tratar desse assunto didaticamente, alguns autores dividem a educação cristã primitiva em alguns períodos. Têm-se, assim, o período apostólico, que corresponde à atuação de Jesus de Nazaré, o mestre por excelência, e dos primeiros apóstolos, aos quais foi dada a incumbência de pregar a Boa Nova a toda criatura (A BÍBLIA…, Mateus 28:18-20). O período patrístico aponta para o trabalho exercido pelos primeiros pais da igreja, quase todos educadores, numa fase que cobre os primeiros séculos da Igreja. O período monástico é o período dos monges ascetas que se refugiavam e dedicavam-se a Deus através de orações e exercícios piedosos, primeiramente vivendo isolados e, a partir do século IV, formando uma comunidade religiosa nos mosteiros, os quais se tornaram centros da cultura e da educação medieval, pela preservação e reprodução da literatura clássica. E o período escolástico refere-se ao movimento intelectual que cobre o século XII até a renascença, caracterizado pela “escolástica” como método particular de ensino.

Não se irá tratar de cada um destes períodos aqui detalhadamente, mas o objetivo é tão somente caracterizar o ambiente que marcou a comunidade cristã primitiva e que moldou a primeira educação cristã. No seu desenvolvimento, destacam-se a vida, o pensamento e as obras dos pais da Igreja Cristã que constituem seu legado para a Educação Cristã, especialmente no que tange aos princípios gerais de educação que estabeleceram.

Jesus, O Mestre

Jesus Cristo é a pessoa mais importante e o centro da religião cristã. Para os cristãos há somente um Deus, que subsiste em três pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, sendo que o Filho Se fez homem na pessoa de Jesus Cristo, o Verbo eterno, para ser o único mediador entre Deus e os homens, de maneira que “nEle habita corporalmente, toda a plenitude da divindade” (A BÌBLIA…, Colossenses 2:9).

Em toda a Bíblia, e de um modo especial nos Evangelhos, Jesus é apresentado como Mestre Divino, como Pastor das Ovelhas, como a Verdade e a Luz, “que vinda ao mundo, ilumina a todo homem” (A BÍBLIA…, João 1:9), e seu ministério neste mundo consistiu, em grande parte, no revelar e ensinar a vontade de Deus ao seu povo. Há, portanto, para os cristãos, somente um Mestre perfeito, o Mestre dos mestres. Seu exemplo é o exemplo perfeito. Ele é o ideal, o padrão, o ponto central sobre o qual toda a atenção deve ser dirigida. Por isso, também, os primeiros pais da Igreja, como Clemente de Alexandria, não cansavam de estabelecer essa relação de Jesus como o Pedagogo.

Sua contribuição como Pedagogo se dá em muitas esferas. Primeiro, pelo que Jesus é. Ele é apresentado na Bíblia como o caminho, a verdade, a porta, a luz, a sabedoria personificada. Em seguida, pelo que ele ensinou, através de sua palavra escrita e das palavras que falou enquanto esteve na Terra, instruindo e orientando os seus discípulos. Jesus é ainda tido como exemplo para os educadores. O Mestre perfeito deixou um exemplo para ser seguido por todos quantos almejam a perfeição, tanto no que se refere à sua vida, moral e atitudes, como também à abordagem educativa e métodos de ensino que ele utilizou em seu ministério e na instrução que deu a seus discípulos. Finalmente, pensadores reformados como Zwínglio, Comênius, e a tradição reformada como um todo entende que a própria obra de Jesus na cruz foi tão ampla e poderosa que Ele pode ser visto como o Redentor da Pedagogia; A idéia é que sendo Cristo o agente da obra da criação, da providência e da redenção, e sendo a educação um elemento dessa criação, somente Cristo pode redimir e criar a verdadeira Pedagogia baseada nos princípios fundamentais da doutrina bíblica, que levam em conta a seqüência dos estados do homem: criação-queda-redenção.

A Comunidade Cristã Primitiva

A comunidade dos primeiros cristãos, juntamente com a família, era o meio ou o ambiente educativo no período de formação e surgimento da religião e da educação cristã, em que pelo ministério e pregação de Jesus e dos apóstolos, os primeiros cristãos judeus e gentios se convertiam ao Evangelho e se reuniam nas primeiras igrejas. Estas, muitas vezes, funcionavam nas casas dos convertidos, e mesmo em catacumbas e lugares escondidos, em virtude da perseguição que os cristãos enfrentaram já no primeiro século da religião cristã.

O cristianismo, do seu surgimento até o reinado de Constantino no início dos anos 300, desenvolveu-se a tal ponto que passou a ser a religião dominante na Ásia menor, como também na Trácua e Armênia, na Antioquia, na Síria, nas costas da Grécia e Macedônia, nas Ilhas gregas, no Norte do Egito, na província da África, na Itália, no sul da Gália e na Espanha, sendo mais fraco em outras partes do Império Romano. O fato marcante é que o cristianismo alcançou os povos das mais variadas línguas e culturas, mostrando-se mais inclusivo que qualquer outra tradição cultural, no sentido de assimilar diferentes raças, culturas, línguas, sexos, profissões e camadas sociais.

O cristianismo introduziu-se em todas as classes sociais. Eram numerosos os cristãos na corte imperial, entre os elementos do governo, e entre os soldados. Em sua gênese, os adeptos da religião cristã eram principalmente os artesãos, pequenos negociantes, proprietários de pequenas terras, em sua maioria pessoas humildes. Sabe-se também que o cristianismo primitivo promoveu uma grande mudança social em certas regiões (CAIRNS, 1990, p. 47). Earle E. Cairns, pesquisador da história da Igreja Cristã, confirma esta reorganização social decorrente das doutrinas e práticas da Igreja primitiva:

A Igreja de Jerusalém insistiu sobre a igualdade espiritual dos sexos e deu muita importância às mulheres na igreja. A criação de um grupo de homens para tomar conta das necessidades foi outro acontecimento de relevância social ocorrido ainda nos primeiros anos do nascimento da Igreja. A caridade deveria ser administrada por um corpo organizado, os precursores dos diáconos. (CAIRNS, 1990, p. 47).

Os primeiros cristãos enfrentaram perseguições tanto por parte dos judeus, quanto da parte dos Imperadores Romanos, e o resultado destas dificuldades contribuiu para moldar em grande parte o caráter moral da Igreja. A vida cristã foi mantida assim num alto nível moral, devido ao fato de que os que não eram verdadeiramente convertidos desistiam ante o terror e o sofrimento que tinham de enfrentar por amor a Cristo. Durante o II e o III séculos, o caráter espiritual, moral e de conduta social dos cristãos permaneceu como desde o princípio, num nível bastante elevado, que os distinguia do resto do mundo, especialmente pela sua moralidade superior. A fraternidade cristã, a pureza, a honestidade, a bondade e o amor cristãos eram qualidades estranhas ao mundo da época e se destacava em épocas de calamidade, em que os cristãos proviam e cuidavam não somente dos da mesma fé, mas de todos os necessitados, sem distinção (NICHOLS, 1981, p. 33).

A igreja primitiva insistia em que seus membros não deveriam tomar parte nas práticas pagãs da sociedade romana, como a idolatria ou imoralidade pagãs; era permitido o convívio com os pagãos em relações sociais que não fossem prejudiciais, e que não comprometessem ou sacrificassem os princípios cristãos: “O cristão devia seguir os princípios de não fazer nada que prejudicasse o corpo do qual Cristo era Senhor, nada que prejudicasse os outros ou enfraquecesse os cristãos, evitar tudo que não glorificasse a Deus” (CAIRNS, 1990, p. 69).

Apesar dessa atitude de separação moral e espiritual com relação às práticas e relações do mundo não-cristão, os cristãos poderiam ser considerados cidadãos exemplares, desde que não fossem instados a violar os preceitos de Deus, a maior autoridade a quem deviam obediência absoluta; obedeciam, respeitavam e oravam pelas autoridades devidamente constituídas, pagavam os impostos devidos, de modo que sua influência no mundo se fez claramente sentir, fato comprovado através do reconhecimento oficial do Imperador Constantino da importância do Cristianismo para o Estado.

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A educação cristã no primeiro século era uma educação sem escolas, como aconteceu com grande parte das religiões em religiões em seus primeiros tempos (LUZURIAGA, 1987, p. 71). As famílias eram o núcleo imediato da vida e da educação e, aos poucos, além da formação para o trabalho e para a leitura e estudo das escrituras, foi surgindo uma forma própria de ensino, de caráter mais religioso que pedagógico, visando a preparação para a vida eterna, e mais concretamente, para que os alunos tivessem os conhecimentos bíblicos considerados pré-requisitos para o batismo.

Nesse contexto de inculcar nas crianças e convertidos as principais doutrinas bíblicas necessárias à salvação e ao ingresso formal na Igreja através do batismo, surgiu a chamada instrução catequista, dada por oficiais eclesiásticos que instruíam os catecúmenos. Tal preparação, de início muito elementar, foi-se desenvolvendo aos poucos, até darem origem a escolas propriamente ditas.

Essa instrução doutrinária oferecida pela Igreja é confirmada por Nichols (1981, p. 35), outro pesquisador da história da Igreja Cristã: “Para que os catecúmenos ou candidatos ao batismo fossem devidamente instruídos, como também para defender o cristianismo dos erros dos gnósticos, foram estabelecidas certas declarações breves sobre o que constituía objeto de fé para os cristãos”. Esses estudos, segundo a citação, geraram os primeiros credos e catecismos da Igreja, que passaram a constituir o conteúdo da instrução, aos quais se juntaram mais tarde, o canto e a música. Nos períodos em que os cristãos enfrentavam maior perseguição religiosa, esse ensino era dado clandestinamente, nos lugares dedicados ao culto e aos sepultamentos.

As Primeiras Escolas

A instrução catequista, de cunho elementar e informal oferecida pelos oficiais eclesiásticos, com o avanço do cristianismo, teve a necessidade de se organizar melhor e de contar com mestres especialmente preparados para a educação. Surgiram, então, as escolas de catequistas, em seguida as escolas episcopais, a escola paroquial ou presbiterial e finalmente a educação dos mosteiros.

A primeira escola de catequista que surgiu foi a de Alexandria, criada por volta de 179 por Pantaenus, filósofo grego convertido à fé cristã. Era uma escola que objetivava instruir os convertidos do paganismo ao Cristianismo, e que se tornou grande centro de cultura religiosa e estudo superior da época e foco de atração da elite greco-romana. Ali era dado um ensino religioso, de um ponto de vista enciclopédico e teológico. Ao fundador sucederam dois dos mais destacados Pais da Igreja: Clemente e Orígenes.

Por volta do século IV surgiu um outro tipo de escola, a escola episcopal, que visava a formação de oficiais eclesiásticos. Nela se dava instrução superior (ensino de teologia e serviço eclesiástico) aos aspirantes da Igreja, como diáconos e presbíteros. A escola episcopal mais conhecida foi criada por Santo Agostinho em Hipona, em 391.

Depois da invasão de Roma pelos bárbaros em 410, aparece um tipo de escola elementar, que alcançou um número maior de alunos. Era a escola das igrejas rurais, chamada de paroquial ou presbiterial. Uma importante recomendação pronunciada no Concílio de Vaison, de 529, e repetida noutros Concílios, fornece uma visão do propósito e conteúdo da educação nesta escola: ordenava-se “a todos os sacerdotes encarregados de paróquia receber jovens na qualidade de leitores com o fim de educa-los cristãmente, de ensinar-lhes os salmos e as lições da Escritura e toda a lei do Senhor, de modo que possam preparar entre eles dignos sucessores” (LUZURIAGA, 1987, p. 72).

O propósito da maioria desses tipos de escolas citados era, evidentemente, religioso, e visava a formação de eclesiásticos. Existiam ainda, na época, as escolas romanas ordinárias, que, por estarem já estabelecidas há mais tempo, acabavam por alcançar a maior parte da população que recebia alguma educação. Entretanto, estas desapareceram com as invasões dos bárbaros, e o ensino ficou reduzido a educação oferecida nos mosteiros, principais mantenedores da educação e da cultura durante a Idade Média.

A educação monástica surgiu no Oriente, entre os monges que se retiraram para o deserto e organizaram os primeiros mosteiros, onde os noviços recebiam instrução mais ascética e moral do que intelectual. Esta última, entretanto, era necessária para que o aluno pudesse ler as Sagradas Escrituras, aprender os salmos e epístolas, e entregar-se à leitura e cópia de manuscritos. Basílio e João Crisóstomo ordenaram que fossem admitidos desde a primeira infância os meninos levados pelos pais ou os órfãos, para ensina-los a ler e conhecer a Bíblia (LUZURIAGA, 1987, p.73).

Dentre as diversas regras de conduta para os monges, a Regra da Ordem de São Bento (criada por volta do ano de 525) foi a que mais se destacou e veio fornecer o modelo para esse tipo de educação em toda a Europa. Ela estabelecia a leitura dos textos sagrados durante a refeição dos monges, a admissão de meninos para educar, a necessidade de os monges terem um ofício, por ser a ociosidade considerada como inimigo da alma e ainda dispunha sobre horas de leitura fora das refeições, em livros da biblioteca, haja vista que todo convento deveria ter uma biblioteca, instituindo-se um inspetor que velasse para que as leituras fossem feitas. Em decorrência dessa regra rígida de educação monástica, a ordem dos beneditinos acabou por se converter em importante centro de cultura e educação.

Cabe acrescentar que a instrução monástica que dominou a idade média foi marcada pelo escolasticismo, que teve como representante principal Tomás de Aquino. Entendido como um completo sistema de pensamento, filosófico, epistemológico, teológico, etc., o escolasticismo medieval buscava uma síntese entre a religião cristã e o pensamento não-cristão, sobretudo dos gregos.

O perigo da síntese tomasiana para o cristianismo original foi representado pelo risco de uma acomodação indevida das doutrinas cristãs aos conceitos aristotélicos, com o que Deus deixou de ser o Deus Pessoal da Bíblia e passou a ser visto a partir dos conceitos filosóficos da Forma Pura e da Causa não causada, e a ênfase filosófica gerou uma tendência racionalista e uma intelectualização da fé cristã. A crença de Tomás de Aquino na distinção entre reino da graça e reino da natureza também acabou por diminuir a autoridade da Palavra de Deus sobre os assuntos mais práticos da vida humana.

A escolástica medieval é um exemplo de como o cristianismo ortodoxo pregado por Jesus e pelos primeiros apóstolos, ou seja, fiel às doutrinas e à simplicidade bíblicas, foi sendo descaracterizado pela introdução de heresias e da filosofia grega humanista. A adoção do cristianismo como religião oficial do Estado Romano a partir do Imperador Constantino também contribuiu para a decadência doutrinária e moral da religião cristã. As igrejas encheram-se de membros professos e muitas tradições e costumes humanos foram introduzidos na liturgia, na forma de governo, e na doutrina da Igreja Cristã.

Em seu posicionamento contra a síntese escolástica, os reformadores insistiram em que somente a Escritura deveria dirigir a vida humana e guiar o homem em sua busca pelo conhecimento, sob o lema: “Sola Scriptura”. Tal rompimento com a síntese escolástica ocorreu de fato no âmbito doutrinário e eclesiástico, e seria de fundamental importância que tivesse um desenvolvimento sólido como perspectiva norteadora de outras áreas da vida humana, dentre as quais a educação.

Os Primeiros Educadores Cristãos

Clemente de Alexandria (155-225)

Clemente de Alexandria nasceu em Atenas. Filho de pais pagãos, foi educado na filosofia grega, viajando muito e estudando com muitos mestres antes de começar a estudar com Pantaenus, por cuja influência se converteu ao cristianismo. Pantaenus foi o primeiro diretor da Escola de Alexandria. Antes de 190, Clemente passou a dirigir a escola junto com Pantaenus, e dirigiu-a sozinho de 190 a 202.

Clemente tinha como objetivo para si o ideal de um filósofo cristão, e em suas obras buscou aproximar a filosofia grega do cristianismo evidenciando que o cristianismo era a filosofia superior e definitiva. Grande leitor da literatura pagã grega, chegou a citar cerca de 500 autores em suas obras. Por reconhecer a razão como base fundamental do conhecimento, embora aliada à fé, é por vezes apresentado como representante da tradição racionalista.

CAIRNS, em seu livro sobre a História da Igreja cristã, contrabalança essa idéia, afirmando que:

Sem dúvida alguma, Clemente tinha em alto apreço a sabedoria grega, mas uma leitura cuidadosa de suas obras deixará a impressão de que para ele a Bíblia está em primeiro lugar na vida do cristão. Ao mesmo tempo, já que toda verdade pertence a Deus, tudo o que houvesse de verdadeiro na sabedoria grega deveria ser empregado no serviço de Deus. O perigo desta posição está em que se pode imperceptivelmente sintetizar cristianismo e filosofia grega, passando-se a considerar o cristianismo como um simples sincretismo de filosofia grega e teologia bíblica. (CAIRNS, 1990, p. 91).

Clemente é autor da célebre trilogia: o Protréptico, o Pedagogo e o Stromata. Seu Protréptico ou Exortação aos Gentios é um documento missionário de cunho apologético escrito por volta do ano 190 para provar a superioridade do cristianismo como a verdadeira filosofia e assim levar os pagãos a aceitá-lo. As Stromata ou Seleções evidenciam o amplo conhecimento de Clemente da Literatura pagã de seu tempo. No Livro I, o Cristianismo é apresentado como o verdadeiro conhecimento. Clemente cria que a filosofia grega tomara o que havia de verdade nela do Velho Testamento e que era uma preparação para o Evangelho. No Livro II, mostra que a moralidade cristã é superior à pagã. O livro III é uma exposição sobre o casamento cristão. Nos livros VII e VIII, ele descreve o modo de viver dos cristãos.

Com relação à educação, sua obra mais importante é a segunda de sua trilogia, o Paedagogus ou Tutor, considerada o primeiro tratado cristão de educação. Trata-se de um tratado moral de instrução para os jovens cristãos, onde Cristo é apresentado como o verdadeiro mestre que deixou as regras para a vida cristã. O mestre é o Logos; quando encaminha os homens para a verdade, chama-se Logos Pedagogo; quando ensina a verdade, Logos Didascalo. Compõe-se de três livros. No livro I, o autor desenvolve as conseqüências espirituais da noção da “pedagogia” do Verbo, da formação que Deus dá aos fiéis por meio de Cristo. Os Livros II e III constituem um tratado de moral prática, examinando os deveres dos cristãos e dando-lhes conselhos sobre a maneira de viver, comer, beber, dormir, etc. (LUZURIAGA,1987;  DE ROSA, 1993).

Vale ressaltar algumas considerações sobre sua exposição demonstrando que Jesus é o verdadeiro Pedagogo dos cristãos. Clemente relata que ao se dar o nome de “pastor” e dizer: “Eu sou o bom pastor”, Jesus Se compara aos pastores que guiam suas ovelhas. Deus, portanto, conduz a humanidade inteira e ama os homens, sendo que esta posição é apresentada desde o Antigo Testamento: “Só o Senhor foi o seu guia, e nenhum outro deus estava com ele” (A BÍBLIA…, Deuteronômio 32:10-12); “Eu sou o Senhor teu Deus, que te fiz sair do Egito” (A BÍBLIA…, Êxodo 20:2); “Eu sou contigo, para te guardar onde quer que fores, e te reconduzirei a esta terra, e não te abandonarei, sem ter cumprido o que prometi” (A BÍBLIA…, Gênesis 18:15).

A própria Lei – prossegue Clemente – dada por Deus ao povo de Israel, é considerada como aio, ou pedagogo, para conduzir a Cristo. O Pedagogo, Cristo, é aquele que ensina o seu povo, que tem autoridade, exerce a disciplina e o juízo. Suas características marcantes são a Sabedoria, o Poder, a Solicitude. Ele faz-se respeitar, chama e leva ao caminho da salvação. Como um Pai, a bondade e a severidade de Cristo se revelam aos crentes na medida certa, de modo que dá mandamentos imprimindo-lhes uma tal característica que permite aos fiéis executá-los, com a ajuda do Santo Espírito.

Clemente, em sua obra, ainda fornece uma indicação do propósito da educação e da Obra de Cristo como Pedagogo: que os crentes adquiram a semelhança com Deus, por meio da mortificação da carne em seus desejos pecaminosos e do cultivo das virtudes cristãs, e por meio destas alcancem o propósito para o qual foram criados: a imagem e semelhança de Deus. Quanto à pedagogia, é a religião: ela é ao mesmo tempo o ensinamento do serviço de Deus, educação em vista do conhecimento da verdade e boa formação que conduz ao céu.

Orígenes (185-254)

Discípulo e sucessor de Clemente na Escola de Alexandria, era tão competente que foi escolhido para suceder Clemente em 203, aos 18 anos de idade, e ocupou este cargo até 231. Seu amigo Ambrósio, homem rico que ele convertera do gnosticismo, se responsabilizou pela publicação de suas muitas obras. É possível que Orígenes tenha sido autor de seis mil pergaminhos. Orígenes escreveu obras filosóficas importantes, entre elas a obra intitulada De Principiis, considerado o primeiro grande tratado cristão de teologia sistemática. Assim, especialmente em questões teológicas e hermenêuticas, Orígenes pode ser comparado com Agostinho, no significado de sua obra.

Orígenes foi um homem de grande cultura. Recomenda o estudo das ciências, especialmente das matemáticas e considera a filosofia como coroamento do saber e preâmbulo para doutrina religiosa, pois para ele, a virtude pode ser ensinada e aprendida. Contudo, nada se compara com a importância decisiva que tem os Evangelhos e a tradição apostólica. Sua importância como educador está na escola que dirigiu em Alexandria e na que, mais tarde, fundou em Cesaréia, e alcançou grande fama. (LUZURIAGA, 1987, p. 74).

Basílio (329-379)

Representante da pedagogia monástica, a quem se deve a fundação dos mosteiros do mundo católico oriental, homem de grande cultura e cujas Regras revelam grande valor pedagógico. Acentua o senso social, de comunidade, e insiste no valor da caridade e do auxílio mútuo. Como meios de educação recomenda o trabalho e a leitura dos Evangelhos; as letras serão aprendidas por meio deles, especialmente do livro de Provérbios.

Jerônimo (340-420)

Natural de Veneza, Jerônimo converteu-se ao cristianismo aos 25 anos de idade, quando era estudante em Roma, sendo batizado em 360. Dedicou-se ao estudo das Escrituras e à prática monástica, indo passar vários anos, feito monge, num deserto perto de Antioquia, onde enfrentou muitas dificuldades, embora sem abandonar seus estudos em Roma. Seu grande amor ao Cristianismo, poder intelectual e extraordinário raciocínio, exerceu grande influência na aristocracia romana, particularmente entre algumas mulheres da nobreza. Passou os últimos 35 anos de sua vida em um mosteiro em Belém, estudando e escrevendo, até sua morte em 420.

A principal de suas obras foi a tradução que fez da Bíblia do original em Hebraico para o latim, a Vulgata, a Bíblia da Idade Média, e revisou cuidadosamente a versão latina do Novo Testamento existente. Jerônimo escreveu ainda comentários, tratados de teologia, livros em defesa da vida monástica e inúmeras cartas.

Além da ação monástica, Jerônimo se distinguiu na educação pelas duas cartas que escreveu sobre a educação das meninas, que revelam o tipo de educação feminina pregada pelo cristianismo primitivo. Recomendando a educação doméstica, materna, adverte:

(…) a maior mestra de vossa filha sereis vós, e vivereis de tal sorte que à tenra menina admirem vossos santos costumes, e não veja em vós, nem em seu pai, coisa que possa ser pecado. Lembrai-vos, pois, de que sois mãe de uma donzela, que melhor poderá ser ensinada com exemplos que com palavras e gritos. (SÃO JERÔNIMO apud. LUZURIAGA, 1987, p. 75).

Jerônimo recomenda a educação ascética e a instrução baseada em orações, leitura de livros religiosos e trabalhos manuais e domésticos.

Agostinho (354-430)

Agostinho foi sem dúvida o maior dentre os pais da Igreja e um dos pensadores mais importantes de todos os tempos, cuja contribuição ao Cristianismo é reconhecida tanto pelo Protestantismo como pelo Catolicismo Romano. Nasceu em Tagaste, na Numídia, Norte da África romanizada, de pai pagão e mãe cristã. Sua mãe, Mônica, mulher piedosa e cristã fervorosa, dedicou sua vida à sua formação e conversão à fé cristã. Ele, porém, não lhe seguiu o exemplo na mocidade, mas, ao ser enviado para estudar retórica em Cartago, passou a viver uma vida de devassidão, da qual resultou seu filho natural, Adeodato. De início, embora meditasse bastante sobre assuntos religiosos, vivia de modo praticamente irreligioso, mas na busca pela verdade, aderiu à heresia maniqueísta e aos ensinos do neo-platonismo. Ensinou retórica em sua cidade natal e em Cartago até ir para Milão em 384.

Nesta cidade, abalado profundamente pela pregação de Ambrosio, o nobre bispo, aconteceu a crise que levou à sua conversão, em 386. Começou a estudar o Cristianismo, e numa certa ocasião em que, num jardim, meditava sobre sua condição espiritual, ouviu uma voz de um jovem vizinho que dizia: “toma e lê”. Agostinho abriu sua Bíblia em Romanos 13:13-14 e a leitura trouxe-lhe a luz que não encontrara nem no maniqueísmo, nem no neoplatonismo. Foi recebido à Igreja em 387 e, de volta a Cartago, foi ordenado sacerdote em 391. Cinco anos depois foi consagrado Bispo de Hipona. Fundou aí uma comunidade religiosa, logo convertida em grande centro da cultura eclesiástica e donde saíram destacados sacerdotes e bispos. Até a sua morte em 430, empenhou-se na administração episcopal, estudando e escrevendo. Deixou mais de 100 livros, 500 sermões e 200 cartas (CAIRNS, 1990, p. 118).

Dentre suas numerosas obras, destacam-se: Confessiones, provavelmente sua obra mais conhecida e uma das maiores autobiografias de todos os tempos, em que descreve a sua vida pregressa, a sua conversão e os acontecimentos subseqüentes. O livro traz no primeiro parágrafo a conhecida frase: “Tu nos fizeste para Ti e nosso coração não descansará enquanto não repousar em Ti”. Nas Retractationes, outra obra autobiográfica produzida antes de sua morte, Agostinho faz um balanço de suas idéias e lamenta em particular sua aproximação com a filosofia pagã, a qual jamais pode levar o homem à verdade como faz o cristianismo. De Doctrina Christiana é a obra exegética mais importante que escreveu, onde desenvolve o princípio da analogia da fé (CAIRNS, 1990, p. 19). Outras obras e tratados teológicos foram: De Trinitate, De libero arbítrio, Soliloquia, Da Ordem, De civitate Dei, Contra Acadêmicos e De Magistro.

As quatro últimas obras são as mais importantes do ponto de vista pedagógico. No tratado Da Ordem, ele explica sua concepção de educação integral humanística. De civitate Dei, ou A Cidade de Deus, de caráter apologético, foi considerada por Agostinho sua grande obra. Nela, o autor propôs uma filosofia da história, real e abrangente, que contrapunha a Cidade de Deus e a Cidade da Terra. Na primeira, o povo de Deus, unido pelo amor e pelo desejo de Sua Glória, viveria em felicidade eterna após o julgamento final. A Cidade da Terra era composta pelos seres que, amando a si mesmos, procuram sua própria glória e benefício, e por isso seriam condenados ao castigo eterno (CAIRNS, 1990, p. 120). Segundo Cairns (1990, p. 120), a formulação de uma interpretação cristã da história deve ser tida como uma das contribuições permanentes deixadas por este grande erudito cristão. Agostinho exalta o poder espiritual sobre o temporal ao afirmar a Soberania do Deus que se tornou o Criador da história no tempo. “Deus é o Senhor da história e nada o limita, como ensinaria o filósofo Hegel (1770-1831) […] O fim ou objetivo da história, para Agostinho, está fora da história, nas mãos de um Deus eterno”.

Uma de suas obras escritas em forma de diálogo foi Contra Acadêmicos, onde se procura demonstrar que o homem jamais pode alcançar a verdade completa através do estudo filosófico e que a certeza somente vêm pela revelação bíblica. Outra obra pedagógica importante foi De Magistro, ou Do Mestre. Na obra, escrita em Cartago, Agostinho quer educar seu filho Adeodato, com 16 anos de idade, dentro de sólidos princípios religiosos, sem contudo negligenciar a instrução profana. Segundo De Rosa (1993, p. 101), “a obra é bastante simpática aos estudiosos da Educação, porque mostra os desvelos de um pai que procura dirigir o espírito do Filho, tendo como escopo final a salvação da alma”.

Finalmente, pode-se considerar como principais características da Educação Cristã primitiva:

  • Consideração da família como a mais imediata comunidade pessoal e educativa, sendo o núcleo responsável pela educação, através da vida, exemplo e ensino dos pais;
  • Ensino fundamentado nas Escrituras Sagradas, sendo a Bíblia considerada como o conteúdo da instrução, outras vezes como o material didático (para o ensino da leitura) e como o próprio propósito da educação (que era preparar as pessoas para que pudessem lê-la e estuda-la). A presença da Bíblia no ensino cristão primitivo era percebido também de forma indireta, quando dela se extraíam princípios morais, regras, e valores norteadores da educação cristã.
  • Reconhecimento do valor do indivíduo como obra de Deus.
  • Tendência à universalização do ensino cristão, assim como aconteceu com a religião cristã, através da superação dos limites de nação e Estado e da criação da consciência universal humana;
  • Fundamentação das relações humanas nas virtudes cristãs, como o amor e a caridade.
  • Igualdade essencial de todos os homens, seja qual for a posição econômica, classe social ou gênero.
  • Valorização da vida e propósito espirituais sobre os puramente intelectuais;
  • A vida terrena presente passa a ser vista à luz da eternidade, e portanto, a educação está intrinsecamente voltada para o que pode ser útil nesse mundo tendo em vista a vida futura (essa visão orientou o avanço do Cristianismo no mundo).

Fonte: Parte 1 da Monografia de Karis Beatriz Gueiros Anglada Davis – Fundamentos Históricos e Filosóficos de uma Educação Bíblico-Reformada

Entenda mais como praticar uma educação domiciliar flexível, leia aqui.